domingo, 3 de janeiro de 2010

Um pouco de Frei Marcos


Sou misteriosamente amado!
Frei Marcos Matsubara, OCD

Nasci em uma família de imigrantes japoneses budistas. Para dizer a verdade, budista pra valer era só a minha mãe, os outros iam no “vai da valsa”. Minha mãe rezava todos os dias, pela manhã e à noite, com a disciplina kamikaze típica dos orientais. Tantas vezes eu a vi adormecer diante do oratório, extenuada pelos trabalhos domésticos, recitando infinitas vezes o mesmo e hipnótico mantra (acho que era algo como “Namyo Hô ren Guekyo” ou qualquer coisa parecida). Não havia espaço para qualquer tipo de criatividade naquelas orações. Era uma prece repetitiva, insistente, monótona, cadenciada, imutável (lembra as orações do terço e as ladainhas que o povo reza).

Minha mãe recitava algo numa linguagem misteriosa, num japonês que eu não entendia e que mais parecia um lamento, entrecortado apenas pelo som metálico de um pequeno sino. A coreografia da oração ficava completa com o barulhinho ritmado de um instrumento que se assemelha a um terço feito de contas de madeira, que minha mãe esfregava com fervor entre as mãos. Tudo isso acompanhado pelo perfume do incenso japonês (mais suave que o indiano), velas e frutas depositadas cuidadosamente no oratório. Certamente foi dela que herdei o gosto pela oração.

Mas, estranhamente, não me interessei pelo budismo. Desde de pequeno eu resisti aos ensinamentos de minha mãe. Quando me perguntam acerca da doutrina budista eu simplesmente digo que não sei responder porque nunca fui budista e, portanto, não estou capacitado para esclarecer dúvidas sobre esta religião. Costumo brincar dizendo que minha mãe era da “Legião de Maria do budismo” ou do “Apostolado da Oração budista”, só faltava a fita vermelha no pescoço. Ela foi a responsável direta pela conversão de várias pessoas à sua religião, era uma espécie de catequista.

Devo ter sido uma grande decepção para ela. Quando eu tinha 6 anos olhei nos seus olhos e disparei uma pergunta surpreendente: “Mãe você deixa eu ser católico?” É claro que ela disse não! Perguntou-me se eu sabia o que significava aquilo eu respondi que sim. Na minha cabeça de menino, a Igreja Católica era uma espécie de clube onde as pessoas se reuniam para cantar, rezar e comer um “biscoitinho” que só era dado aos adultos. Sabia também que na Igreja do bairro (Nossa Senhora do Carmo – Santos/SP) havia uma estátua de um barbudo e cabeludo sagrando na face. Disseram-me que era Deus, mas eu tinha medo dele. Aquela figura coberta de sangue com cabelos embaraçados carregando uma cruz (devia ser o Senhor dos Passos) era assustadora.

A partir dos 7 anos, em 1969, comecei a freqüentar a escola primária. Gostava muito das aulas de religião que eram opcionais, mas eu participava sem que minha mãe soubesse. Minha primeira professora (Dona Beatriz Alonso) foi quem começou a contar histórias da Bíblia. Lembro da Sarça Ardente, do juízo de Salomão, de Adão e Eva, das Bodas de Caná... eu adorava aquelas histórias e gostava mais ainda quando a professora pedia para reproduzir a história em forma de desenhos. Naquela época eu “morria de inveja” quando meus primos e amigos diziam que estavam freqüentando o catecismo na Paróquia. Queria saber o que eles estavam aprendendo e cantar aquelas músicas que só eles sabiam (louvando Maria, Senhor vos ofertamos...) Ah, meu Deus do céu! O que eu não daria para saber cantar aquelas palavras, mesmo sem saber o que significavam. Jurei que quando completasse 18 anos – símbolo da maturidade – iria até a Igreja pedir o batismo.

Mas veio a adolescência, mudei de cidade e deixei de lado o interesse pela Igreja. Como todos os adolescentes da minha época, comecei a me interessar pelas festas. Foi a minha geração que descobriu e conheceu o “boom” das discotecas: o luzir frenético dos estroboscópios, os canhões de luzes coloridas, a música ensurdecedora dos cantores americanos e os passos previamente ensaiados em grupos (como o hustle) e roupas super coloridas, além dos cabelos estrategicamente compridos para provocar os mais velhos.

Quando completei 18 anos meu pai faleceu. Era um homem especial. Foi ele que me ensinou valores inestimáveis como por exemplo: o senso da justiça, verdade, responsabilidade, honestidade e trabalho. A sua ausência causou um irreparável prejuízo em minha família. Nunca esquecerei quando ele me ajudou a fazer a minha primeira árvore de Natal. Minha mãe não gostou muito da idéia. Disse que aquilo era um símbolo cristão e nós não éramos cristãos. Eu insisti e consegui convencê-la a pedir para que meu pai comprasse o material necessário. Eu era menino, devia ter uns 10 anos, mas nunca me esqueci daquela árvore de galho seco, pintada de prata, com algodão, lanterninhas de papel dourado e origamis que minha mãe ensinou. Custei a superar a ausência dele.

Logo depois que meu pai faleceu, fui a uma Igreja e pedi o batismo. Depois de alguns meses de preparação, o meu catequista (que hoje é meu padrinho) perguntou se eu queria ser batizado na Vigília da Páscoa. Foi um privilégio ser batizado no Sábado Santo. A partir disso fui deixando de lado a turma de amigos e me dedicando ao apostolado da Igreja: grupos de jovens (JUFRA), promoção humana, liturgia, oração.

Novos amigos, novos interesses, novas perspectivas. Uma dúvida começou a me incomodar: será que aquilo que eu sentia não era um apelo vocacional? Minha mãe reclamava que eu não parava mais em casa, só vivia fazendo coisas para a Igreja e não tinha tempo para dar atenção a ela e meus irmãos. Quando decidi contá-la que eu ia entrar no Seminário dos Padres Canossianos, quase não consegui dizer a notícia. Sabia que ia causar uma tristeza profunda e uma decepção imensa. Ela ouviu minha decisão e ficou em silêncio. Segurou firme as lágrimas, respirou fundo e disse sorrindo para não chorar: “Mas não dá pra ser católico sem ser padre? Não é suficiente ser católico?”.

Eu abaixei a cabeça e disse que já estava decidido. No prazo de um mês eu deixaria minha família. Precisava apenas cumprir as obrigações no local onde trabalhava, o mês do aviso prévio e providenciar algumas coisas para o ingresso no Seminário.

Quando chegou o dia da viagem ela preparou cuidadosamente o almoço para que eu me alimentasse bem antes da jornada. Pediu-me desculpas por não ter feito coisa melhor, o dinheiro estava curto. Eu entendia. Sempre fomos pobres e sabia que ela estava fazendo o melhor que podia. Saímos de casa em silêncio. Eu segurava uma sacola e um violão, ela carregava uma mochila. Quando chegou o ônibus ela me disse: “Toma cuidado! Cuide-se bem, você é muito frágil!”.

Ela tinha razão. Sou mesmo muito frágil. Tão frágil que Deus sempre me cercou de pessoas generosas para que me amparassem nos momentos críticos.

De lá para cá passaram 16 anos. Minha mãe morreu, hoje sou Carmelita Descalço e algumas pequenas gentilezas de Deus preanunciavam esta minha vocação carmelitana.

- Nasci na Paróquia Nossa Senhora do Carmo, na Ponta da Praia, em Santos/SP.

- Como não conseguiam lembrar do nome de minha mãe (Fujiko) as vizinhas apelidaram-na de Teresa.

- O primeiro religioso que conheci era um carmelita: Frei Nuno.

Nunca entendi direito porque Deus me chamou à vida religiosa. Este é um privilégio que parecia impossível e não estava nos meu planos, nem nos da minha família. Tudo é um mistério, como é próprio de Deus. Tudo isso é surpreendente, inesperado, ilógico, estranho, inexplicável e mesmo assim ele tem me suportado esses anos todos neste caminho. Sou misteriosamente muito privilegiado.

Fonte: http://www.comshalom.org/formacao/exibir.php?form_id=1073